Angústia




"Agora, está angustiada a minha alma, e que direi eu?
Pai, salva-me desta hora? Não…!" (Jesus Cristo)

Tem dias em que as palavras não se completam. As frases acabam em reticências. Os parágrafos perdem o sentido que originalmente queriam dar. Uma ponta de melancolia espeta a alma. A banalidade do viver agride logo cedo. Ao tocar o chão, nossos pés sonâmbulos prenunciam angústia. Escovamos os dentes, repetindo com movimentos circulares uma rotina de décadas. Antecipamos tédio. Vestimos a camisa e notamos que ela guarda um cheiro de fadiga. Cadenciamos os passos rumo ao porvir, sem atinar para a vexação inclemente do tempo – que nos devora lento.
Tem dias em que olhamos a alvorada pela janela e engasgamos. A cabeça lateja com uma enxaqueca existencial. Gostaríamos que os postes que iluminam as ruas desertas continuassem acesos. Em vão ansiamos por qualquer facho que clareie a alma. Os sons matutinos tinem exagerados. As primeiras cores despertam o dia de má vontade. Os votos de bom dia, boa sorte, chegam como mistificações. A vida se revela insossa. Recusamos distrações. Descartamos conselhos. Preferimos o silêncio. Buscamos solitude.
Tem dias em que reconhecemos, e assumimos, nossa insignificância cósmica. Notamos que nossa valentia se mostrou inútil. Depois de todo suor, todo desgaste e todo esforço, o mundo continuou em sua jornada trágica. Vemos que nossas lágrimas foram desnecessárias e nossas inúmeras palavras, vãs. Percebemos que éramos tangidos por inércia – tínhamos só que sobreviver. Obedecemos ao imperativo de seguir adiante sem atinar os porquês de sermos resilientes.
Consideramos as coreografias que nos afastam de nós mesmos, demoníacas. Na coragem de enfrentar nossa condição efêmera e passageira, escapamos da anestesia que gera alienados. Admitir angústia como parte da condição humana pode tornar-se alavanca que nos resgata do marasmo. Angústia tem força de ensinar o valor do instante que vem, passa e desaparece. Introspecção – nunca solidão – pode converter casmurrice em gravidade espiritual. Conscientes da inexorabilidade da dor e do sofrimento, atinamos: a vida se dá no espaço que separa impotência de onipotência. Nesse hiato, reconhecemo-nos humanos, não divinos. Abandonamos fingimentos arrogantes.
Só há alguma chance de escapar de dias assim, lembrando o primeiro colo que nos embalou com afeto. Talvez, recordando o rosto meigo, que nos elegeu únicos. Quem sabe, restaurando na memória a grade do berço que nos protegeu de quedas. É possível trazer à lembrança reminiscências que transformam melancolia em saudade e tristeza em poesia.
Na maior angústia não cabe suplicar aos deuses que nos deem pernas ágeis. Para renascer, carecemos de ombros largos. Fé pode significar coragem. Um passo de cada vez, sem muitas vezes saber como, a esperança esmaga a resignação. Jesus enfrentou o seu dia mau assim. Inspirados nele, enfrentamos o nosso.

Assinado: Ricardo Gondim.
/Foto de Хазов Александр

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